Entre Fellini e Sorrentino, a construção da sociedade italiana.
Ao longo dos anos, o cinema italiano foi utilizado multíplices vezes como testemunho da evolução da sociedade. A partir das imagens da história do cinema italiano, é possível catalogar e reconhecer um conjunto de momentos, situações, símbolos e lugares através dos quais reconstrói-se parcialmente a história da evolução do mundo que nos circunda. Um fenômeno que se intensifica após a Segunda Guerra Mundial, passando pelo boom econômico até os dias hodiernos.
Surge, assim, entre os cineastas, a necessidade de informar e testemunhar a visão da sociedade da sua época. Um dos grandes responsáveis por descrever a realidade de seu tempo foi Federico Fellini, que com seus filmes representou os mecanismos e as dinâmicas da evolução da Itália, focalizando sua atenção, de maneira particular, em Roma, sua cidade adotiva. Fellini retratou, em suas obras, não apenas os momentos de reconstrução, industrialização e expansão das periferias urbanas, como também se debruçou em pesquisas acerca da condição da sociedade e do indivíduo, em uma verdadeira pesquisa antropológica sobre o povo italiano. “La Dolce Vita” é um filme que representa, sem dúvidas, uma época, e que ainda hoje vive no imaginário universal, contribuindo para a construção da persona italiana.
O cinema de Fellini está intimamente ligado à realidade histórica italiana e representa plenamente a cultura popular e a jornada percorrida pelos italianos do pós-guerra até o boom econômico. Desde os anos 60, o panorama cinematográfico italiano não tinha encontrado um cineasta que perseguisse o propósito antropológico felliniano de representação de um contexto histórico. O panorama mudou com o advento de Paolo Sorrentino, cineasta vencedor do prêmio Oscar pelo melhor filme estrangeiro em 2013, o qual com “La Grande Bellezza” deu um testemunho de uma sociedade italiana moderna, decadente e solitária.
Fellini inspira-se na vida real e traz para o palco episódios que se sucedem na Itália na virada dos anos cinquenta e sessenta. Tornando-se assim, um cronista e poeta, que analisa a sua contemporaneidade, ao mesmo tempo que tenta profetizar seu futuro. Futuro esse que se demonstra mais decadente que o imaginado, quando retratado pelos olhos de Sorrentino. O diretor napolitano analisa uma mesma fauna, retratando uma humanidade variada, cuja miséria a mediocridade ora se destaca, ora é ofuscada pelo egocentrismo intrínseco à natureza humana.
Tanto em “La Dolce Vita” quanto em “La Grande Bellezza” os artistas decidiram retratar a cidade de Roma, grande musa inspiradora, sob uma ótica inusitada, observando não apenas a cidade mas, sobretudo, aqueles que a habitam. Um lugar onde convivem a burguesia, o clero e a nobreza, que se deixam levar pelos acontecimentos, apodrecendo a moral de sua sociedade. Os dois cineastas encenam sua realidade contemporânea, uma visão não tão distante, apesar de “La Dolce Vita” retratar a Roma do boom econômico, enquanto “La Grande Bellezza” a Roma decadente de nossos tempos.
É evidente que ambos os diretores decidiram oferecer um retrato agridoce, mas essencialmente cômico da vida “in” de seu tempo. A obra de Fellini é o manifesto da dos anos 60, a qual rejeita qualquer esquema moralista no julgamento dos acontecimentos que cercam seus personagens. Uma escolha semelhante é realizada por Sorrentino, o qual também dirige seu olhar para o vazio em que se baseia a sociedade burguesa hodierna. Em “Roma”, outra obra aclamada do cineasta, Fellini oferece uma alegoria da Cidade Eterna; uma figura feminina com traços tipicamente maternos. A mesma ideia é desenvolvida por Sorrentino, o qual sublinha como é difícil viver num local tão heterogêneo e com discrepâncias econômicas tão fortes. Em particular, os personagens Ramona e Romano representam as duas vítimas da Mamma Roma, a grande mãe que acolhe a todos, mas que não cuida dos seus próprios filhos.
Desse modo, as obras fellinianas e sorrentinianas apresentam uma contribuição única para a história da mitologia da cidade, um dos principais pontos de recolha de ideias, imagens e mitos da cultura ocidental.
Tanto nos filmes de Fellini como de Sorrentino, Roma é mostrada como um centro de vida cultural e mundana ao mesmo tempo, um verdadeiro espelho da nossa sociedade. Fellini retrata uma Itália recuperada da guerra e que quer ser resgatada no cenário internacional. Um país que é destino das estrelas de Hollywood, as quais buscam em Roma um delírio feliz e distante. Mesmo após mais de cinquenta anos, Paolo Sorrentino se encontra em uma Itália que mudou infinitamente, mas que ao mesmo tempo é perfeitamente imutável. É assim que “La grande bellezza” se desdobra a partir dessa ideia audaciosa, tão semelhante a La Dolce Vita, mas ao mesmo tempo tão independente e representativa de outra época para a história italiana. Na Itália de Sorrentino, parece não haver mais nenhuma lei moral. A sociedade romana é desgastada, nem mesmo o clero se salva, todos se deixam levar pelos próprios desejos.
Em última análise, os dois diretores, embora tenham crescido e se formado em períodos diferentes, têm uma trajetória artística muito semelhante. Ambos não são originários de Roma, mas decidiram se mudar para a capital e o amor pela cidade eterna, a qual os acolheu, é evidente em suas obras. A Roma que nos é mostrada é repleta de facetas e está em um eterno limbo entre modernidade e antiguidade, entre beleza e miséria, entre realidade e ficção, entre pureza e corrupção; o verdadeiro espelho de uma era e de uma sociedade que parece não aprender com seu passado e está destinada a repeti-lo em seu futuro, assim como demonstra a nova onda de extrema direita que está se espalhando no país nos últimos anos.
Se no cinema italiano do pós-guerra se define o encontro entre as duas grandes culturas populistas do país, a comunista e a católica, o resultado ideológico que elas produzem encontra no trabalho dos dois artistas um que de visionário.
À primeira vista, parece incomum situar o cinema enquanto dimensão política. No entanto, esse princípio de elisão política foi inteiramente funcional para a construção da mitologia italiana; para explicar de alguma forma sua “anomalia” no próprio contexto do fortalecimento do cinema italiano do pós-guerra. Um cinema marcado, como toda sua cultura, por uma relação forte e incômoda com a política. Relação explícita, como no caso do chamado “cinema comprometido”, ou indireta, permeada pela construção de formas simbólicas, como no caso de Fellini e Sorrentino.
Autor: Raissa Amatori
Referencias:
“La Dolce Vita”, Federico Fellini, Pathé Consortium Cinéma, 1960.
“Roma”, Federico Fellini, Ultra Film, Les Productions Artistes Associés, 1972.
“La Grande Bellezza”, Paolo Sorrentino, Indigo Film, Medusa Film, Babe Films, Pathé, 2013.